Kamunabi. Uma imersão na mitologia e história japonesa.



O Dissidência Pop traz mais uma obra do mestre da ficção científica "hard", Yukinobo Hoshino, autor de 2001 Nights, já analisado no blog. Só que desta vez não vou falar sobre naves espaciais e colonização de planetas, mas sim sobre folclore. Para quem não sabe, esse grande autor também é um entusiasta de história e antropologia, sendo que publicou vários mangás com essa temática. O mangá da vez se chama Kamunabi: Imibe Kana - Onna no Shinwa Series, e narra em cinco histórias curtas, os casos que a especialista em história feminina, Imibe Kana, resolve, utilizando sua perspicácia natural combinada com o seu vasto conhecimento da história e mitologia japonesa e mundial.

Kamunabi (chamarei só de Kamunabi, o nome completo é muito longo) foi publicado de 09 de novembro de 2002 a 17 de julho de 2004, isto na revista Big Comic, famosa publicação que já lançou diversos mangás do mestre Osamu Tesuka caracterizados como seinen, tal como Barbara, além de outros clássicos, como Golgo 13. Kamunabi é um mangá one-shot, portanto, é composto de um único volume. Este volume possui seis capítulos, sendo 5 histórias, visto o primeiro e o segundo capítulo tratarem da mesma trama. Tirando os dois primeiros capítulos, todas as outras histórias possuem enredos próprios e independentes.



Kamunabi é considerado um spin-off de um mangá de grande sucesso de Yukinobi Hoshino, Munakata Kyouju Denkikou. A ligação entre essas duas obras se dá pela semelhança da temática, enquanto Kamunabi é protagonizada pela historiadora Imibe Kana que desvenda casos utilizando seus conhecimentos históricos, Munakata é um mangá de oito volumes publicado de 1994 a 2008, o qual mostra os casos desvendados pelo antropologista Munakata, o qual estuda a relação entre o folclore e contos de fada com acontecimentos reais, demonstrando que histórias que parecem totalmente fantasiosas, são apenas interpretações de eventos reais.

Realmente Kamunabi e Munakata são bastante parecidos, ambos são estudiosos que utilizam seus conhecimentos de história para resolver os casos que demandam uma solução. Mas talvez apenas uma similitude dos temas não transforma um mangá em spin-off. Não sei se Imibe Kana aparece em algum ponto no mangá de Munakata, já que li apenas o primeiro volume, então fica a suposição lançada. Se alguém leu Munakata inteiro, por favor responda esta questão! Há ainda a continuação do mangá, chamada Munakata Kyouju Ikouroku, sendo publicado desde 2004, sem término ainda.



Como dito acima, este mangá é composto de cinco histórias distintas, as quais não possuem ligação entre si, mas mesmo assim compartilham o fato de estarem unidas pela protagonista, diante do caráter episódico da obra. Imibe Kana é como se fosse um Sherlock Holmes, onde diversos casos são colocados na sua frente para serem resolvidos. Naturalmente, todos estão ligados com a temática da história e mitologia, mas engana-se que pensa que este mangá é destituído de ação e mistérios. Cada caso é um verdadeiro trhiller de ação, visto que as situações em que Kana precisa utilizar seus dotes intelectuais, geralmente envolvem pessoas desaparecidas, alucinógenos, assassinatos e outras situações perigosas.

Imibe Kana é uma personagem singular. Uma mulher madura, elegante e sensual, sem ser vulgar, diga-se de passagem. Mesmo assim, seu principal atributo é sua inteligência, demonstrada pelo conhecimento histórico impecável. Por ser episódico, Kamunabi não deixa muito espaço para o desenvolvimento da protagonista. De qualquer forma, é impossível não simpatizar com essa protagonista forte, a qual parece sempre ter o domínio da situação. Juntamente com ela são apresentados uma série de personagens auxiliares, desde ajudantes, outros professores, secretários, etc. Entretanto, poucos ou nenhums são memoráveis, indo o destaque completamente para a professora Imibe Kana.



Assim como os mangás de ficção científica de Yukinobu Hoshino são uma verdadeira aula de física, química e astronomia, seus mangás históricos ou que envolvem estudos de história, como no caso de Kamunabi, são uma sensacional aula de mitologia e folclore. Yukinobu Hoshino consegue aliar de forma positiva conhecimentos reais com a ficção. Notadamente, a maior parte de Kamunabi é ficção, entretanto, as informações históricas são baseadas em pesquisas, descobertas e teorias reais, assim como faz na ficção científica, onde suas obras são pautadas em conhecimentos científicos prévios. Mesmo se tratando de uma obra de ficção, Kamunabi é um bom jeito de aprender um pouco mais sobre a história do Japão e do mundo.

Alguns podem argumentar de Kumanabi seja expositivo demais, o que prejudicaria o ritmo do mangá. De certa forma isso é verdade, muito espaço é dedicado para explicações de teorias e eventos. Para quem gosta de algo bastante dinâmico e acelerado pode achar Kumanabi um tanto enfadonho. Sou suspeito de dizer, já que sou apaixonado por história, então adorei estas exposições de Kumanabi, mas é perfeitamente aceitável que o autor sacrificou um pouco do ritmo para dar uma composição mais sólida à obra. Para quem gosta de história, é um prato cheio.



O traço é realista, foge bastante dos padrões comuns do mangá, buscando uma verossimilhança mais acentuada. Os traços e o character design não são de outro mundo, mas não chegam a ser feios. Como Yukinobu Hoshino é um artista antigo, seu traço mantém o viés clássico do seu estilo. Dou destaque para as suas representações históricas, percebe-se que ele realmente pesquisou bastante para compor Kamunabi.

Como Kamunabi é composto por cinco casos diferentes, acho prudente falar pelo menos um pouquinho sobre cada um, a fim de mostrar a excelência do trabalho de Yukinobu Hoshino nesta obra. A primeira estória se chama Kamunabi, que dá nome ao mangá (não diga!) e ilustra a capa. É composta por dois capítulos inteiros, o que faz o caso mais longo desse mangá. Já de cara somos introduzidos ao foco desta interessante obra, que é justamente a mitologia feminina.




Kamunabi começa com um intrigante paralelo entre duas culturas distintas que realizavam o mesmo ritual, queimar uma gestante viva na hora do parto, um caso realizado nos subúrbios da antiga Jerusalém e o outro em um vilarejo do Japão ancestral. Parece chocante, e é mesmo. mas o longo da narrativa as motivações e os porquês deste tipo de ato é explanado de uma forma que o quebra-cabeça vai se montando na medida que Imibe Kana fecha as pontas do mistério.

Dentro deste contexto, se fecha uma trama intricada sobre um certo clã que guardava segredos deste povo ancestral, principalmente quanto ao uso de ervas e plantas alucinógenas, especialmente o que conhecemos como maconha! Interessantíssimo como o autor demonstra que o uso desta planta é muito mais antigo do que imaginávamos, remotando à aurora da humanidade. Explica também como a maconha poderia ter chegado ao Japão por meio de mercadores da indonésia, além da diferenciação do cânhamo e da maconha, sendo a primeira utilizada como uma fibra na confecção de roupas e cordas, mesmo sendo a mesma planta da maconha.



Mas o autor não abandona em nenhum momento a temática feminina, já que o foco é justamente encontrar uma explicação para o sacrifício ritual das grávidas parturientes mediante o fogo. Não entrarei em detalhes, mas a maconha exerceu uma importância vital nesta questão. O que faria uma mãe não lutar pela própria sobrevivência e do seu filho? O que foi queimado junto com ela no momento do seu sacrifício? As motivações para esse ritual nos dias de hoje podem parecer pueris e até mesmo cruéis, mas é de vital importância que se entenda a questão mediante o contexto da época, evitando anacronismos. E justamente trabalha o autor neste sentido, o que faz desta uma obra magistral para os amantes de história.

Mas como disse acima, nem só de história vive esse mangá. Imibe Kana se envolve numas situação perigosa ao mexer nos interesses do clã portador destes conhecimentos antigos sobre a cannabis sativa, em busca de descobrir a localização da Kamunabi, que significa uma espécie de montanha sagrada no Japão. Nem precisa de muita explicação para entender em que tipo de situação a nossa heroína se meteu né?



O segundo caso a ser solucionado pela historiadora Imibe Kana na estória Sun Horse (cavalo do sol em tradução livre) diz respeito a um caso menos violento e perigoso do que em Kamunabi, mas tão misterioso quanto. Como o nome pode sugerir, neste caso o tema são cavalos, ou melhor, um cavalo em específico.  Sun Horse levanta o mito do cavalo solar, que existe em diversas culturas ao redor do mundo, como entre os gregos, os celtas e os hindus, que aceitavam que cavalos alados serviam como transporte para deuses.

Deixando a parte história de lado, Imibe Kana decide ajudar um importante jogador de futebol britânico que joga em um time de Kyoto a encontrar o paradeiro de seu irmão desaparecido há quatro anos quando rodava o japão em busca do "cavalo solar" japonês. inclusive Kana havia se encontrado com esse pesquisador em certa ocasião. Essa história específica do cavalo solar fazia referência ao cavalo branco de Uffington, um "desenho" feito em uma montanha da Inglaterra de um cavalo branco, datado de 1400 a 600 a. C., que pode ser interpretado como uma mostra de culto equino na Idade do Bronze entre os celtas.



O irmão desaparecido do jogador tinha o interesse específico de encontrar o "cavalo branco" do Japão, entretanto, segundo se sabia, não havia uma dessas representações em solo nipônico. Desta forma, Imibe Kana parte em busca de tudo quanto é mito e cultos relacionados aos cavalos, em busca de uma resposta para este mistério. Imibe Kana mata dois coelhos com uma cajadada só, trás novas luzes sobre o culto equino no Japão, e decifra o caso do desaparecimento do pesquisador.

O terceiro caso se chama The Silent Sheep. Assim como os demais, este é um caso muito interessante. O mote central é o uso de ossos em processos divinatórios. Explicando melhor, era comum em muitas culturas no mundo inteiro utilizar ossos de animais para prever o futuro, além de servirem para outros rituais, o que se chama escapulomancia. Neste capítulo nos defrontamos com a história de um pesquisador amador que encontra um osso de ovelha utilizado com propósitos religiosos. O curioso desse achado é que o osso dataria de um período anterior da chegada de ovelhas ao Japão.



A descoberta do osso de ovelha revolucionaria o mundo da arqueologia, caso não virasse fruto de uma obsessão doentia e de uma tragédia. Imibe Kana se depara com o objeto depois de misteriosamente se encontrar com uma moça à beira da morte que lhe entrega o osso e apenas possui tempo de dizer "pai". Assim como é comum ocorrer com nossa heroína, ela se envolve numa trama na qual quanto mais estuda o passado, mais facilita a descoberta do que teria ocasionado o misterioso homicídio. The Silent Sheep é um bom exemplo de um thriller de aventura.

O quinto capítulo e a quarta estória se chama The Dance of Sarume, Este é o capítulo mais introspectivo. Enquanto Imibe Kana viaja a convite em um cruzeiro por alguma ilhas do japão, ela se deixa levar por uma série de mistérios arqueológicos sobre o mito de Sarume. Na corte haviam dançarinas de Sarume, que realizavam performances em rituais fúnebres. Bem como, nossa protagonista chega a incríveis resoluções ao perceber que muios mitos, como a aparência de certos deuses, se dão devido a formações geológicas, como ilhas e montes.  Outro tema interessante desse capítulo é mencionar que o povo dominante geralmente representa os seus antecessores e os povos indígenas como animais ou outras denominações pejorativas.



Para finalizar, temos The Flower and the Rock, e mais um caso policial. Esse capítulo trás um arcabouço histórico muito legal. Explica o motivo dos descendentes das primeiras pessoas terem a vida curta, o que explicaria o fato dos imperadores, mesmo sendo considerados deuses (até hoje), morrerem como qualquer um. É um drama familiar complexo, visto o primeiro descendente dos imperadores não ter aceitado casar com a  filha de um deus por ela ser muito feia, preferindo sua bela irmã. Em vingança, o deus puniu ele. Depois é amplamente explorada a relação entre essas duas deusas irmãs.

O monte Fuji seria a irmã bonita e as cavernas de lava a irmã feia. Imibe Kana faz diversos paralelos, sobre como os homens geralmente preferem, sem pensar duas vezes, as mulheres mais bonitas, acarretando sérias consequências negativas do ato impensado. Outro questionamento interessante se dá numa fala da professora Imibe sobre como as duas deusas irmãs personificam as duas concepções do feminino, o cruel, místico e vingativo, e sua contraparte bondosa e enérgica. Falando um pouco do caso policial que se desenrolou neste capítulo, ele mostra justamente essa ambiguidade os homens perante as mulheres, demonstrada na forma de um cruel crime passional.



Assim termino a análise dos capítulos individuais de Kumanabi. Fazendo um retrospecto da obra como um todo, Kamunabi se mostra um mangá sólido, servindo como um belo exemplo do trabalho magistral de Yukinobo Hoshino. Não é sua obra-prima, isso é um fato, mas são histórias curtas muito bem desenvolvidas e com um arcabouço histórico muito bem elaborado, o que demonstra que as pesquisas deste autor são realmente sérias. Kamunabi é uma pedida para aqueles que apreciam uma estória com uma pegada histórica. Espero que tenham gostado deste texto. Até a próxima e fica a dica de mangá muito recomendado.

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